terça-feira, 8 de março de 2011

A gramática universal e a aquisição da linguagem*

Gabriel de Ávila Otero**

Todo ser humano “normal” é capaz de aprender qualquer língua natural (ou seja, língua humana, como Português, Mandarim ou Alemão) se exposta a ela durante seu desenvolvimento. Isso quer dizer que um recém-nascido, após alguns meses, já estará emitindo seus primeiros sons, após o primeiro ano, suas primeiras palavras e por volta dos 4 a 6 anos, já estará falando sua língua (seja ela o Português, o Mandarim ou o Alemão) de maneira bastante completa, principalmente no que diz respeito à estrutura sintática da língua (outros aspectos – fonológicos, discursivos, pragmáticos –
também estarão bastante desenvolvidos, mas podem levar mais tempo de aprimoramento).
E como uma criança de tão pouca idade consegue aprender algo tão complexo como uma linguagem tão rapidamente? Será que o processo de ensino (de pais, amigos, babás e outras fontes de linguagem acessíveis a crianças tão pequenas) é tão bom assim? Será que a criança está cercada de ótimos “professores” de gramática? Ou será ela mesma um pequeno lingüista, testando hipóteses aleatórias, verificando qual a melhor maneira de dizer tal e tal sentença da língua?
De acordo com a Teoria Gerativa, proposta por Chomsky , assumimos que a linguagem seja uma característica inata e específica ao ser humano. Todos nós temos inscritos em nosso código genético uma capacidade que nos permite adquirir e desenvolver a linguagem, e essa característica é exclusiva à nossa espécie.
Seria inviável que se pensasse a criança como um pequeno lingüista, pronto a construir e testar hipóteses acerca de sua própria língua. E é incabível admitir que o meio ambiente lingüístico que cerca a criança (pais, amigos, vizinhos, babás...) esteja “ensinando” (no sentido mais tradicional do termo ) a linguagem para a criança.
Como marcam Hornstein & Lightfoot (1981: 10),

As crianças não testam hipóteses aleatórias, rejeitando aquelas que resultam em frases inaceitáveis;
nós sabemos disso pelo fato de que, em cada comunidade lingüística, as sentenças inaceitáveis
produzidas por crianças ainda bem novas são poucas em número e muito uniformes de uma
crianças para a outra – e isso não se enquadra nem um pouco na hipótese de testes aleatórios.

Isso quer dizer que a criança, durante o processo de aquisição de sua língua materna, não aprende a língua, ela a desenvolve e a adquire.
Como dissemos anteriormente, por volta dos 4-6 anos, a criança já domina a gramática de sua língua, já sabe diferenciar frases gramaticais de agramaticais, já consegue produzir somente frases gramaticais e, não só isso, consegue produzir infinitas frases gramaticais que, por sua vez, poderiam ser de infinita extensão (não fossem problemas pragmáticos envolvidos aí). (No entanto, até agora, por mais que se tenha avançado nos estudos da linguagem, por mais que haja milhares de pesquisadores e lingüistas em todo o mundo construindo e testando teorias gramaticais, o que conseguimos explicitar ainda não consegue dar conta dos conhecimentos que, aos 4-6 anos, parecemos já ter adquirido!) Sendo esse conhecimento tão complexo e desenvolvido tão rapidamente pela criança, há uma
questão que se coloca: como a criança aprende/desenvolve a linguagem com um INPUT lingüístico tão fraco?
Hornstein & Lightfoot (1980: 9) esquematizam o problema da deficiência de estímulo lingüístico em
três níveis:

1. fala que a criança ouve não consiste apenas em sentenças gramaticais uniformes, mas também em falas
com pausas, desvios de linguagem, pensamentos incompletos, etc.
2. disponibilidade de dados é finita, mas a criança consegue lidar com um conjunto de infinitas sentenças,
indo muito além das expressões que ela ouve durante sua infância.
3. As pessoas adquirem conhecimento sobre a estrutura de sua língua mesmo para casos em que nenhuma
evidência esteja disponível nos dados a que foram expostas quando crianças. Evidências cruciais para
tais conhecimentos consistem em julgamentos sobre sentenças raras e complexas, paráfrases e relações
de ambigüidade e “sentenças” agramaticais, ou seja, tudo o que está disponível ao lingüista, mas que
não está presente nos dados lingüísticos primários a que a criança está exposta.
E se ainda não bastassem essas evidências de que o estímulo de fala dirigido à criança é pobre, há trabalhos de campo que mostram que o processo de aquisição em culturas indígenas e aborígenes (como maias do grupo quiché da Guatemala, os kaluli de Papua Nova-Guiné e os samoanos da Samoa Ocidental, na Polinésia ) é muito diferente do que ocorre em nossa cultura ocidental:
Nessas comunidades, a interação verbal entre crianças e adultos é mínima, isto porque a criança
não tem o papel de destinatário até que consiga pronunciar palavras reconhecíveis pela língua. As
vocalizações do bebê são ignoradas pelos adultos e não há intenção atribuída a elas. Segundo Ochs
& Shieffelin (O impacto da socialização da linguagem no desenvolvimento gramatical. IN:
FLETCHER, P. & MACWHINNEY, B. Compêndio da linguagem da criança. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1997), os kaluli adultos ficaram surpresos com o fato de os pais americanos (presentes na
comunidade) utilizarem baby talk (fala infantilizada) para as crianças pequenas e se espantaram
com o fato de as crianças americanas conseguirem aprender adequadamente uma língua sendo
expostas a amostras “deturpadas” de fala segundo a visão de sua cultura (SCARPA, 2001: 216-
217).
Isso quer dizer que o estímulo lingüístico do ambiente da criança é apenas uma parte do processo de aquisição da linguagem. Sendo a linguagem (ou a faculdade da linguagem – conforme expressão de Raposo (1992)) uma capacidade inata, é possível pensar que, a partir do estímulo, a criança
desenvolve sua linguagem, cujas bases e estruturas gramaticais já estão inscritas em sua mente. O ambiente serviria como um gatilho que disparasse a aquisição da linguagem.
Se consideramos a faculdade da linguagem como uma habilidade inata, específica e uniforme a toda espécie humana, teremos também de aceitar que os princípios genéticos da linguagem não podem ser específicos a uma língua X ou Y. Em outras palavras, a propriedade inata da linguagem prevê que a criança irá desenvolver uma linguagem natural humana e não a linguagem X ou Y.
Isso implica que esses princípios inatos da linguagem “devem ser suficientemente abstratos para poderem ser universais, tendo de ser, no entanto, ricos o suficiente para mostrar como uma língua particular qualquer pode ser adquirida sob as condições empíricas apontadas anteriormente”
(HORNSTEIN & LIGHTFOOT, 1981: 13-14).
Dessa forma, podemos entender que uma gramática particular de uma língua deve se enquadrar em padrões formais preestabelecidos, comuns a todas as línguas, que podem ser entendidos como a Gramática Universal (GU). Essa Gramática Universal delimita e modela as gramáticas particulares e possibilita a aquisição completa de uma língua, a despeito da insuficiência ou imperfeição de dados de INPUT durante a fase de aquisição da criança.
Se a GU já está presente na mente do falante, antes mesmo de este entrar na comunidade lingüística (antes, então, de alguém “ensinar” a língua para ele), podemos conceber a idéia de que, a partir de dados primários fracos e pobres, a criança consiga desenvolver a gramática de sua língua específica com perfeição em pouco tempo.
De acordo com Hornstein & Lightfoot (1981: 23), qualquer teoria lingüística de aquisição deve considerar sempre três posições acerca da linguagem: “a maturação da gramática; os princípios genéticos; e a necessária ativação da experiência”.
Somente uma teoria assim (que levasse em consideração esses três aspectos necessários à aquisição) poderia explicar o problema da pobreza do estímulo lingüístico, sistematizado em três níveis ((a), (b) e (c), vistos acima) pelos autores citados.


BIBLIOGRAFIA
CHOMSKY, Noam. Aspectos de la teoria de la sintaxis. Madrid: Aguilar, 1971.
HORNSTEIN, Norbert; LIGHTFOOT, David. Explanations in linguistics. Londres: Longman, 1981.
MIOTO, Carlos et ali. Manual de sintaxe. Florianópolis: Insular, 2000.
RAPOSO, Eduardo. Teoria da gramática: a faculdade da linguagem. Lisboa: Caminho, 1992.
SCARPA, Ester Mirian. Aquisição da linguagem. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. Introdução à lingüística – domínios e fronteiras, v. 1.
São Paulo: Cortez, 2001.
SCHER, Ana Paula et al. Sintaxe. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. Introdução à lingüística – domínios e fronteiras, v. 1. São Paulo:
Cortez, 2001.
* (Publicado na Revista Entrelinhas, do Curso de Letras da Unisino, Ano I - número 0)
** Gabriel de Ávila Othero é bolsista CNPq e
mestrando em Lingüística Aplicada pela
Pontífica Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS

5 comentários: